De uma dor, o despertar do amor

Entrei na Casa da Vida de uma forma um pouco diferente da tradicional, Paloma Dantas, 38 anos, Assistente Social e coordenadora, me recebeu por uma chamada de vídeo e o tour pelo espaço foi virtual, não menos amoroso e acolhedor.

Passamos pelo jardim com seus girassóis floridos e um coqueiro esvoaçante e seguimos para varanda. Conheci Romeu, com seu jeito doce, mas sem passar despercebido. Companhia dos acolhidos, a calopsita é o mascote da casa e faz jus a característica de sua personalidade, um assobio estridente é a forma de desejar as boas-vindas.

Seguimos pela recepção, um senhor de camisa amarela está sentado para ser acolhido, e sem ao menos conhecer o espaço, já agradece sofregamente como se quisesse, pela fala, retribuir um preço que não se cobra. Na Casa da Vida os sentimentos não entendem de dinheiro.

É nítida a energia, o amor, a entrega. Paloma segue pela sala de escuta especializada e vai até o quarto onde ficam as mulheres. Lá estão quatro delas, ambas de cidades diferentes, mas que tem em comum muitas dores. Uma penteia seu cabelo vermelho que dá sinais de não receber tinta há um bom tempo, outras duas arrumam as malas, enquanto a outra conversa comigo e explica como se sente, ela diz que está em casa. Passamos pelo quarto masculino e um único menino acena com a mão, conheço a cozinha, a área de lazer onde são feitas as refeições e Paloma segue para a varanda.

Logo explica uma prática que se tornou regra, assar um bolo todos os dias. Não consigo sentir o cheiro, mas ao pensar, também me traz lembranças afetivas, o que ela busca despertar nas pessoas junto de um café passado. Todos os móveis foram doações da comunidade e tudo é muito limpo e organizado.

HISTÓRIAS DA ALMA

Histórias de vida são dados da alma e a Casa tem muitas. Antes de ser da Vida, foi cenário de uma morte trágica – seu antigo dono suicidou-se na dispensa. Em 2014, o psicólogo e pastor Sinvaldo Queiroz desenvolveu trabalho de capelania aos pacientes e acompanhantes do Hospital Geral de Vitória da Conquista (HGVC). “Diante das necessidades, especialmente dos vindos de outros municípios, despertou o desejo de abrir um espaço de apoio quando, um grupo de pessoas se reuniu e decidiu alugar e, transformar uma casa marcada pela morte, em Casa da Vida”, conta Paloma.

Localizada a 200 metros do hospital, na Avenida Filipinas, na Bahia, o espaço é mantido exclusivamente por doações, alguns mantenedores que contribuem mensalmente e o apoio de voluntários. Já recebeu mais de 3 mil pessoas vindas de todos os lugares do Brasil e de 18 Estados com uma única missão, acolher quem bate à porta. “Na casa não há vínculo religioso, é de amor. Já recebemos uma freira que dividiu quarto com uma pastora, tribos africanas, homossexuais, indígenas, negros e brancos. As pessoas estão unidas por uma dor e não por religião.”

A seleção dos atendidos se dá por triagem do Serviço Social do HGVC, priorizando os que vem de longe para tratar seus familiares e não têm condições de estadia. Não há prazo quanto ao tempo de permanência e a casa oferece cinco refeições: café da manhã, almoço, lanche, janta e uma ceia. O lugar também é suporte para quem precisa utilizar apenas o serviço de lavanderia.

“A maioria dos que chegam estão abatidos, preocupados e com medo, não sabem o que vão encontrar. Um dos processos iniciais é fazer uma foto de identificação para o crachá, depois de alguns dias, a grande maioria vem até mim e pede para trocar, dizem, Paloma, não sou essa pessoa não. Quando respondo, mas você chegou assim. Essa é a maior prova de que algo diferente acontece aqui.”

FIQUE À VONTADE, VOCÊ ESTÁ EM CASA

O propósito da Casa da Vida é cuidar de quem cuida, mas o que mais se ouve são outras definições. Casa do Amor, da Respiração, da Alegria, da Esperança. Um espaço onde a única premissa para quem quer servir é amar o desconhecido. “Se a dor do outro não mexer comigo, não me transformar, preciso me questionar que ser humano estou sendo.”

E na descrença de um cotidiano que se revela cada vez mais individualista, o cuidado com o próximo e a empatia causam estranhamento. “Recebi uma hóspede que não conhecia descarga. Com o passar dos dias observei que ela não se alimentava direito, só tomava café e comia biscoitos e nunca sentava a mesa. Ela não sabia comer com os talheres, foi quando servi a comida, me sentei no chão e comecei a comer com as mãos. Ela me olhou e perguntou se poderia fazer o mesmo, eu disse é claro, aqui você está em casa, pode comer como quiser, sem vergonha e sem julgamentos,” conta.

Sobre a experiência descobriu a pureza através dessa moça de 23 anos que morava na zonal rural, não conhecia shopping, nunca tinha visto um avião e ficava espantada em receber carinho, acolhimento e amor por viver uma realidade de repreensão e sofrimento. “Ficamos dois meses com ela, período em que acompanhou o pai na UTI picado por uma cobra. Nesse tempo não consegui fazê-la compreender o quanto nos transformou em seres humanos melhores. Espero que ela tenha carregado marcas de amor ao passar pela Casa da Vida,” deseja Paloma.

Nas chegadas e partidas os vínculos não se rompem. “Uma mãe passou sete meses conosco por causa da filha que estava na UTI com um problema pulmonar gravíssimo, infelizmente acabou falecendo. Até hoje, mantemos contato e ela me diz, tenho saudades das comidas, tem coisas que só experimentei aí,” revela Paloma e acrescenta “tudo que você imaginar que pudermos fazer para arrancar um sorriso de alguém ou deixar o dia melhor, nós faremos.”

SORTEIO SISTEMA SOLAR

A Casa da Vida se mantém apenas com doações, sem auxílio de programas sociais. Os custos para manutenção mensal são de aproximadamente R$ 15 mil. Antes da pandemia de COVID-19 cerca de 120 pessoas eram acolhidas e contavam com o suporte de 70 voluntários. Mas o cenário mudou e o espaço ficou quase vazio. “Desde que abrimos nunca fechamos a casa. Fizemos uma reunião e o conselho cogitou essa possibilidade. Não poderia aceitar, mas essa decisão não dependia só de mim. Cheguei em casa e contei para os meus filhos, quando me disseram, mãe aquelas pessoas precisam mais de você do que nós, pode ir. Digo que foram os dez meses mais difíceis, precisei me afastar deles e das pessoas que faziam parte da minha rotina para me dedicar a Casa, ficamos apenas eu e mais dois voluntários, a Branca e o Rafael,” revela.

É difícil falar da Paloma sem reconhecer o entusiasmo e alegria de uma baiana arretada. Penso que esse espírito simples é o que tanto cativa os acolhidos. E não duvide, porque se precisar ela move céus e terras. Como na participação do projeto Energia do Bem da Renovigi Energia Solar, criado em 2018 para a doação de sistemas fotovoltaicos a entidades sem fins lucrativos de todo o Brasil.

Os diretores da Solplac Engenharia Sustentável – que realizaram a instalação de forma gratuita, Marcio Araujo e Robertson Martins tiveram participação significativa nesse processo. Enquanto Marcio ligou para Paloma explicando sobre a campanha, os benefícios da energia solar e incentivou o engajamento, Robertson focou na parte técnica, adequando o medidor de energia e dos trâmites legais junto à concessionária. O sistema não atende todo consumo, mas apresenta uma contribuição significativa, especialmente nesse período de pandemia. A intenção da Casa da Vida é expandir o projeto.

Quando ela respondeu: “epa, epa, epa, tô nessa parada e não abro. Acionei os voluntários e disse, vocês estão longe, mas preciso de ajuda. Usem todos os Instagrams, da tia, do pai, do papagaio e vamos votar. Foi um Big Brother, literalmente,” conta animada.

E se engana quem pensa que ela não levou a sério, Paloma solicitava o envio de relatório das votações, contabilizava voto a voto. “Foram várias contas bloqueadas, choro, ansiedade, expectativa, mas muito pensamento positivo. Pensei, se precisar eu ligo para o Teló e digo, meu filho do céu ajuda a gente.”

A ligação não foi preciso e como diria o ditado, a fé e o engajamento moveram montanhas. A Casa da Vida foi uma das 142 entidades beneficiadas com sistemas de Energia Solar da Renovigi. Recebido em junho de 2020 conta com 16 painéis com potência de 340W e 1 inversor de 5KW.

“Todo mês era um sufoco para pagar as contas, só de energia elétrica gastamos aproximadamente R$ 2 mil e agora, por meio desse recurso, nós podemos investir em outras áreas da instituição. Vemos maus exemplos de entidades filantrópicas que se utilizam de má fé e sempre nos preocupamos em preservar a transparência, integridade e confiança,” destaca a coordenadora. “Digo que Deus está disposto a multiplicar tudo aquilo que estivermos dispostos a repartir, por isso, nosso desejo é que a Renovigi tenha um crescimento muito maior do que já é pelo bem que nos fez.”

Paloma acrescenta, “ser uma instituição que depende 100% de doações é um desafio diário. Abraçamos a campanha como forma de provar que é possível encontrar empresas que pensam no bem comum. Avalio que o trabalho social no Brasil precisa de pessoas com maior vontade para o tornar visível. E que é possível confiar. Essa doação não nos beneficiou apenas com a economia na conta de luz, mas na esperança de reacreditar que existe preocupação na prática do bem,” avalia a coordenadora.

O AMOR COMO RESPOSTA

O amor é capaz de transformar histórias de vida. Alguns escritores consideram a maior riqueza do ser humano – amar e ser amado. Esse amor genuíno, sem cobranças é a essência da Casa da Vida e, com ele, ela vai escrevendo sua história. Páginas marcadas pela gratidão de quem chega, pela emoção de quem vai, pela dor acolhida e pelos milagres que surgem em cada bater à porta.

“Se me perguntassem o que eu gostaria para o futuro, respondo sem dúvida: continuar atendendo pessoas de todo país com o coração cheio de compaixão, empatia e compreensão. Buscamos cada vez mais tornar nosso trabalho referência de atendimento humanizado para um público ainda desassistido. Uma grande conquista seria a aquisição do imóvel onde a Casa da Vida funciona, tendo em vista que é alugado e está envolvido em um processo judicial. E por fim, não menos importante, espalhar Casas da Vida pelo Brasil, não apenas espaços físicos, mas a mensagem que levamos todos os dias: o poder da vida sobre a morte, e, de como é possível proporcionar para quem viveu os piores momentos da vida, algumas experiências de alegria, cuidado e afeto,” espera Paloma.

Sobre as doações, o presidente do Conselho de Administração e CEO da Renovigi Energia Solar, Gustavo Müller Martins destaca o compromisso social como essência da marca e parte de um conjunto de ações transformadoras que geram impactos positivos na sociedade.

“Acreditamos na inovação, na tecnologia, na sustentabilidade e na responsabilidade social, mas, especialmente na energia das pessoas. A Renovigi sempre terá esse olhar de comprometimento com a sociedade e saber que, contribuímos positivamente na vida das pessoas, nos torna seguros de que estamos no caminho certo.”

RECORTES

Evanilda Ferreira dos Santos, 33 anos, de Ituaçu, deixou o trabalho, estudos, o marido e filhos para acompanhar o tratamento do ex-esposo. Com esperança no olhar, ensinou que não existem limites quando o assunto é serviço. Suas marcas na Casa da Vida foram de altruísmo e amor genuíno.

 

Oleide José dos Santos, Seu Léi com 60 anos e de Cordeiros, gostava de sentar no jardim para olhar o céu e tomar um café. Deixou na Casa da Vida lembranças afetivas, de profunda admiração e que boas amizades podem surgir em meio aos momentos difíceis da vida.

 

 

No tempo em que o filho estava internado, Vó Maria perdeu seu companheiro de vida. Na Casa da Vida, Maria de Jesus, 69 anos de Cordeiros, adotou muitos netos e ensinou que o segredo é não perder a capacidade de viver.

 

Sorrisos não se revelavam no rosto de Maria Ana de Abreu Rocha, 52 anos, de Macaúbas, talvez pelas experiências difíceis. Na Casa ensinou que a vida se revela no encontro com o outro e em abraços que são sinais de esperança.

 

Izabel Aparecida Guzzon – Jornalista/MTE 5573/SC

 

 

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