As crianças da Vila

O que leva alguém deixar sua referência de lar e vínculos sociais e afetivos para cuidar do outro totalmente desconhecido e vulnerável? Muitas são histórias de quem têm na essência o amor genuíno como Madre Tereza de Calcutá – símbolo de bondade, Zilda Arns – criadora da Pastoral da Criança e Dorothy Stang – referência pela atuação vigorosa em defesa ao reflorestamento. Muitos são os exemplos de quem decidiu abrir mão do tempo com a própria família para ajudar quem precisa. Jorge e Cássia embarcaram nessa viagem, literalmente, e saíram do Rio de Janeiro para contribuir no Distrito Federal. A distância de mais de mil quilômetros foi por uma boa causa.

“Somos de Petrópolis e trabalhávamos numa instituição, quando nos convidaram para assumir o desafio de abrir um espaço no mesmo formato e com a mesma filosofia. Já se passaram 12 anos desde que surgiu a Vila do Pequenino Jesus em Brasília,” conta o coordenador Jorge Eduardo Deister conhecido como Jorginho.

O espaço acolhe pessoas de todas as idades. Bebês, crianças, jovens e adultos com diferentes tipos de deficiência física e intelectual. Recebem atendimento personalizado, qualidade de vida e como diz Jorginho, a referência de família. “Infelizmente na sociedade de hoje as pessoas só valem enquanto produzem, depois, é como se fossem descartáveis e, para os especiais, o espaço é ainda mais limitado. A vida não é isso, é a pessoa por inteiro. Digo que a Vila existe como um socorro, da busca dos direitos, de uma voz onde muitos deles nem conseguem falar. A maioria dos acolhidos estão em situação de abandono e aqui eles são tratados com toda dedicação e amor, como deve ser em uma família.”

A preocupação vai além. Jorginho não queria apenas uma casa no sentido comum. “No início seria Casa do Pequenino Jesus, mas ficaria associada a casa, ah estou indo lá na Casa, mas que casa? Pode ser da tia, da vó, do primo. Queria algo que marcasse e que fosse fácil associar. Foi quando surgiu a Vila,” conta.

Nas vilas a característica de moradia é mais ampla, proximidade com os vizinhos e compartilhamento do espaço. Na do Pequenino Jesus, são 6 casas e 72 acolhidos construídas uma ao lado da outra. Eles são encaminhados pela Vara da Infância e da Juventude (VIJ) ou pela Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes). Nessa grande família além de Jorginho e Cássia, estão os filhos Bernardo (8) e Francisco (6). “Somos uma verdadeira família, moramos com eles, meus filhos vivem isso e minha intenção é formar duas crianças boas para o mundo, que consigam enxergar o próximo com dignidade.”

ESCOLHAS

Filho de pais tradicionais e família religiosa, Jorginho teve uma juventude conturbada. Más companhias e influência do espaço onde morava, contribuíram para caminhos que geraram dor. “Conheci um mundo diferente do que estava acostumado. Quando adolescente entre os 18, 19 anos, perto da minha casa tinha uma boca de fumo, passei a traficar e vender bebidas. Estava ganhando dinheiro, ficando conhecido no meio quando também surgem as vaidades. A bebida não era suficiente e queria algo mais forte, usei maconha e me apresentaram a cocaína, conheci muitos traficantes e vi coisas absurdas. Fui preso, menti para os meus pais e descobri que não tinha amigos,” lembra.

Com as experiências tirou várias lições. “Já tinha conhecido o caminho de Deus, mas não firmado dentro de mim. Sabia que não poderia continuar naquele mundo e digo que um acampamento juvenil da igreja foi o divisor de águas para minha transformação espiritual,” revela. Aprendeu a valorizar a vida na essência e desenvolveu profunda identificação com os problemas dos semelhantes. “Na minha infância levava bolo para as pessoas de rua, fui criado com esse amor pelos mais pobres e me sinto feliz em morar num lugar que posso ajudar as pessoas.”

CHORO DO ARREPENDIMENTO

“Algo que chama minha atenção é quando um deles morre, muitas famílias vão ao enterro e choram muito, choram pelo que não fizeram. Não temos o mesmo sentimento porque oferecemos tudo que podíamos em vida. Brinco que o relacionamento é até que a morte nos separe, temos a curatela deles e somos nós que carregamos o caixão, rezamos a missa de sétimo dia e finalizamos essa etapa. Eles continuam no nosso coração e nossa lembrança,” revela.

Sobre o maior aprendizado, Jorginho atribui dar a vida por eles. Aos 46 anos, diz que sua formação é a realidade que conheceu no mundo, enquanto a esposa Cássia, fisioterapeuta formada, auxilia na administração e atendimentos dos acolhidos. “Poucas pessoas sabem lidar com essas situações, porque não tem perspectivas de melhora. Acolhemos os que dão mais trabalho, os que não tem nada e ninguém para, a partir disso, devolver a dignidade.”

ESTRUTURA E APRENDIZADOS

Localizada no bairro Lago Sul, no Distrito Federal, a Vila do Pequenino Jesus é uma instituição sem fins lucrativos que recebe pequeno repasse financeiro governamental, realiza ações solidárias e conta com doações da comunidade. São 137 funcionários para atendimento 24h entre cuidados de higiene, alimentação e assistência à saúde.

Jacqueline Lopes da Silva acompanhou de perto o crescimento da Vila. “Entrei uma menina, como cuidadora e cresci com ela. Já são 11 anos,” lembra a técnica de enfermagem de 39. O cuidado com o outro é a área que escolheu como formação. O trabalho se tornou prioridade e ainda se emociona ao falar dos acolhidos, que identifica carinhosamente como crianças. “Se me perguntassem se trocaria a Vila por outro lugar, digo que não, nem pensar. Quando estou lá – trabalha no formato de plantão 12×36 – me sinto completa, tenho paz e harmonia. Acho que cuidar das “crianças” é um aprendizado gratificante, como numa escola onde todos os dias você volta para casa com algo novo. Tem os momentos difíceis também, mas quando olho para eles vejo tanto amor, acho que justifica os anos que estou aqui.”

A Vila ensina na prática exercitar a gratidão. Os acolhidos são dependentes, muitos não conseguem falar, andar e outros estão acamados ou são cadeirantes. O espaço é dividido entre o abrigo/crianças e residências inclusivas/adultos e Jacqueline, que têm contato com todas nunca positivou para Covid-19. “O ano de 2020 foi muito difícil pra nós, de muita preocupação, com cuidados extremos, mas estamos conseguindo, revertemos quadros de saúde e alguns saíram vitoriosos da pandemia, choramos, compartilhamos alegrias, assim é a vida aqui.”

Entre os maiores aprendizados diz que a Vila ensinou a ser mais grata. “A nossa vida é muito fácil perto de algumas situações como alguns deles que têm diferentes limitações. Às vezes eles só gostariam de poder comer o que tem vontade, sair para rua ou receber mais visitas. Quando meus amigos reclamam das dificuldades, falo da visão de vida que a Vila me trouxe. Penso que todos deveriam conhecer esse espaço.

Nascida em Brasília e filha de mineira com paraibano, Jacqueline define que a caridade é doar-se ao próximo. “O pouco é muito para eles, o carinho e atenção. As vezes pedem, Jacque mexe na minha perna, puxa o cobertor, ajeita aqui, eles só precisam de atenção. Temos histórias muitos difíceis, mas com partes bonitas. Falo para o Jorginho que ele não me tira da Vila, quero continuar fazendo parte dessa família,” brinca.

DOAÇÃO DO SISTEMA

Com a pandemia, as responsabilidades de proteção e cuidado foram potencializadas. 50 funcionários e 22 acolhidos positivaram para a COVI-19, dois faleceram e as doações diminuíram. A Vila do Pequenino Jesus foi uma das 142 entidades beneficiadas com sistemas de Energia Solar da Renovigi através do projeto Energia do Bem, criado em 2018 para a doação de sistemas fotovoltaicos a entidades sem fins lucrativos de todo o Brasil.

Sobre a postura social, o presidente do Conselho de Administração e CEO da Renovigi Energia Solar, Gustavo Müller Martins lembra a criação da empresa a partir de um pequeno projeto. “Olhar para a Vila do Pequenino Jesus e o trabalho que se compromete, me faz lembrar o início da Renovigi quando o mercado era praticamente inexistente, mas tínhamos o entusiasmo de fazer acontecer. Para nós, poder retribuir através do compromisso social, é uma forma de estimular que outras ideias sejam nutridas e gerem bons resultados para sociedade.”

Para Jorginho, a doação foi extremamente importante e num momento oportuno, ao mesmo tempo em que a Vila ganhou máquinas industriais de lavar roupa e o consumo de energia elétrica aumentaria significativamente.

O sistema conta com 16 painéis de 340W e 1 inversor de 5KW. A instalação e homologação foi feita de forma gratuita, em agosto do ano passado, pelo credenciado parceiro Lumiere Soluções em Energias Sustentáveis que complementou o projeto com mais seis painéis. Conforme o diretor da Lumiere, Leonardo Alves Coelho, a “economia anual chega a R$ 7 mil reais. Com o valor é possível comprar 7.200 máscaras cirúrgicas ou 3.180 fraldas descartáveis.”

Izabel Aparecida Guzzon – Jornalista/MTE 5573/SC

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