Qual o sentimento do outro lado da linha?

Estou na sala ao lado com o telefone na viva voz. A mensagem de espera informa que liguei para o CVV (Centro de Valorização da Vida). “Sua chamada é a 18 da fila, por favor aguarde atendimento para conversar com um de nossos voluntários”. Cinco minutos depois, uma voz masculina atende e instantaneamente remete a um apresentador de telejornal, uma dicção firme e convicta: “CVV Boni, boa tarde”.

Segunda-feira é o dia de expediente do voluntário, das 15h às 19h num compromisso extremamente sério e respeitoso que realiza há mais de 16 anos. “Sentia vontade de fazer um serviço voluntário, contribuir com algo na sociedade independente de dinheiro, salário ou coisa parecida. Algo que não fosse tão vistoso, com méritos ou exibicionismo. Simples, sem reconhecimento,” explica quando questiono os motivos que o levam a colaborar de forma gratuita com o outros.

A linha 188 – é nacional e gratuita de prevenção do suicídio – começou a funcionar no Rio Grande do Sul e, em setembro de 2017, iniciou sua expansão para todo o Brasil. A distribuição das chamadas é aleatória e você pode conversar com um voluntário de Chapecó, São Paulo ou do Nordeste, por exemplo.

Boni ouviu sobre a associação num grupo de amigos, se interessou e fez o curso que integra o Programa de Seleção de Voluntários (PSV), uma das exigências para os candidatos a esse trabalho.  O treinamento é composto por aulas com duração de 2h por dia, três vezes na semana, por um período de aproximadamente dois meses. “No início não concordava completamente com a filosofia do CVV que nos orienta apenas a ouvir, sem opiniões, sugestões ou conselhos. Mas com o tempo, me adaptei ao formato, apenas me mostrando presente, fazendo com que a própria pessoa, no decorrer do seu discurso, perceba o momento que está vivenciando e possa ter os estalos para mudança.”

Questiono se seria uma descoberta da própria fala e Boni afirma que sim. “Acolho e aceito a pessoa do jeito que ela é. Uma vez atendi um cara que queria cometer suicídio. Pedi para ter calma e me propus a conversar sobre isso, mas depois que a ligação termina você não tem mais contato, não sei se conversarei com ele novamente, não sei o que vai acontecer, espero que tenha ajudado. As vezes penso, será que estou ajudando mesmo? Então, sinto que estou fazendo o meu melhor dentro da filosofia da instituição. Aqui em Sorocaba, o nosso posto existe há 38 anos, se salvamos uma vida nesse tempo já valeu a pena.”

Entre para conversar

O Centro de Valorização da Vida foi fundado em 1962 em São Paulo, mas antes de chegar ao Brasil, informações mostram seu surgimento na Segunda Guerra Mundial, em 1945. Com a morte de tantas pessoas no conflito, o cenário social ficou devastado. Em uma cidade da Inglaterra, uma jovem entre os 13/14 anos cometeu suicídio e o pastor da cidade, sensibilizado com a situação por tratar de uma moça jovem, bonita e no início da vida, quis saber as razões. A resposta que encontrou, depois de ter conversado com seus familiares, foi que a menina havia se tornado moça e, sem conhecimento sobre, pensou se tratar de um pecado ao qual estava sendo castigada.

Diante do motivo considerado simples e para evitar outras situações, o pastor colocou em sua ante sala uma placa com os dizeres. “Entre aqui para tratar de assuntos sérios”. Com atendimentos gratuitos, a intenção era possibilitar que as pessoas contassem suas aflições, falassem sobre os problemas numa conversa informal. Certo dia, uma senhora foi em busca de atendimento e como o pastor não estava disponível naquele momento, foi orientada a voltar mais tarde, incomodada desabafou com a secretária.

Quando finalizou o atendimento, o pastor questionou aonde estava a mulher, uma vez que ouvi seu descontentamento. A secretária disse que ela tinha ido embora, então ele perguntou, mas o que você disse a ela? Eu não disse nada, ela falou tudo que queria e na sequência informou que já tinha resolvido e iria embora. Ali estava a resposta, no próprio desabafo.

“Pendure tudo que você trouxe. Retire na saída”

Os contatos com o CVV são feitos pelos telefones 188, 24 horas e sem custo de ligação. O atendimento também pode ocorrer pessoalmente nos mais de 120 postos de atendimento ou pelo contato através do site www.cvv.org.br, por chat ou e-mail. Nestes canais, são realizados mais de 2 milhões de atendimentos anuais, por aproximadamente 3.400 voluntários, localizados em 24 estados mais o Distrito Federal.

A Associação Sorocabana de Apoio a Vida (Assave) é o posto onde Boni é voluntário. Uma unidade independente constituída com doações da comunidade sem vínculo religioso ou de organização política. No portão de entrada da casa, localizada no centro da cidade, um prego preso em uma placa indica: “Pendure tudo que você trouxe. Retire na saída”.

“Isso significa que quando estamos aqui não devemos trazer nada, deixamos nossos problemas ou qualquer sentimento ruim lá fora. Se não estivermos bem no dia, é possível trocar o horário com outro voluntário. É preciso estar com a cabeça leve e tranquila. Mas isso não abre precedentes para descompromisso. Ah, o trabalho é voluntário e vou quando der, não funciona assim. Quem se compromete com o CVV se compromete com o trabalho sério, de responsabilidade, é algo sagrado. Brinco que posso brigar com a minha esposa, mas ela sabe que em determinado dia e horário tenho esse compromisso.”

Conversa como cura 

Em mais de uma década e meia de voluntariado, Boni diz que já atendeu pessoas de todos os lugares. Questionado se acredita na fala como poder de cura, é enfático: “Não é a fala que tem o poder de cura, é a conversa. Quantas pessoas querem conversar com a gente às vezes, na rua, no ônibus e não damos atenção, fingimos estar no celular ou desviamos o olhar? Geralmente não temos tempo para ninguém, inclusive para nossa família, a vida é corrida. Então, o CVV é o tempo que eu tenho para dar atenção que as pessoas precisam. E tem conversas tão gostosas como a nossa.”

Na função de ouvinte, pergunto se ele tem desabafado com alguém, explica que o grupo de voluntários realiza encontros mensais para discutir a saúde mental e compartilhar experiências.

Questiono se pode comentar alguma situação ou recorte que o marcaram no decorrer desses anos, prontamente responde. “Lembro imediatamente de algumas coisas e, geralmente, coisas simples que me tocaram. Uma vez atendi a ligação de uma senhora, imagino que era aposentada pelo contexto da história, disse que perdeu o pai fazia seis anos e há três meses havia perdido a mãe, estava sozinha. Filha única, não era casada porque escolheu cuidar deles. Certo dia saindo de casa, uma vizinha lhe orientou a tomar cuidado em andar sozinha pois poderia cair na rua, ser atropelada e não teria ninguém para avisar, seria tratada como uma indigente. Com isso ficou com um medo que a paralisou, disse não conseguir mais sair de casa para fazer suas atividades, já estava sem comida e angustiada. Perguntei se não tinha nenhum parente, algum tio ou alguém que pudesse contar, mas ela simplesmente estava sozinha, comentou que os pais eram filhos único, ela não tinha irmãos, nem primos, nem tios, ninguém para acionar. Mais uma vez questionei que deveria ter amigos, colegas de trabalho, mas disse que os anos tinham passado e estavam distantes, não deveriam lembrar mais dela, moravam longe e ela não conhecia mais ninguém. Me aposentei faz cinco anos, não tenho mais para onde ir e também não quero depender dos meus vizinhos. A história dela me sensibilizou.”

Conselho

Pergunto se Boni é médico, uma vez que informou atuar na área da saúde e ter ministrado aulas. Com uma simplicidade e experiência contagiante de seus 52 anos, diz “sou um aprendiz da vida”.

Peço então que fale algo para as pessoas, que considera importante e que faça parte de seu altruísmo.

“Nessa vida não somos e levamos nada, estamos conversando agora, hoje, mas amanhã podemos não estar aqui. Então o que importa? Respeitar as pessoas do jeito que elas são. Às vezes nosso próximo é arrogante, mesquinho ou com ego inflado, mas é assim, cabe a nós respeitar, o que é bem diferente de aceitar, respeitar como as pessoas são, sem criticar.”

Ações internas

Em função da pandemia da Covid-19, que exigiu adaptações na forma de trabalho e levou muitos profissionais para o home office, a Renovigi, através do seu departamento de pessoal, desenvolveu materiais específicos e ações digitais. O material preventivo e orientativo foi compartilhado nas redes sociais e no grupo interno de colaboradores.

 

Por Izabel Aparecida Guzzon

 

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